Cláudia Sarmento
TÓQUIO - As retrospectivas de fim de ano feitas pelas publicações do Japão tinham em comum um mesmo nome na lista das celebridades que mais apareceram em 2009: a cantora Ai Haruna, uma artista que ganhou fama fazendo imitações de estrelas pop nos programas de TV japoneses, os chamados tarento shows, bastante populares no país. Haruna não tem uma grande voz, mas seu estilo - sem vergonha de ser kitsch - faz sucesso no showbiz japonês: aparenta muito menos do que os seus 37 anos, tem um belo corpo, um rosto de boneca, sempre impecavelmente maquiado, é falante e simpática. A diferença é que até os 19 anos ela era um homem e seu sucesso está quebrando tabus numa sociedade avançada econômica e politicamente, mas conservadora nos costumes.
Haruna, cujo nome original era Kenji Onishi, foi eleita a transexual mais bonita do mundo em outubro, no concurso Miss International Queen, realizado na Tailândia. Desde então deixou de ser só uma assídua frequentadora dos programas televisivos de seu país e tem soltado o verbo contra a discriminação das minorias sexuais no Japão, onde movimentos gays não são tão fortes ou organizados como nos Estados Unidos e Europa.
- Fiquei impressionada com as oportunidades que pessoas como eu têm na Tailândia, por exemplo. Elas trabalham em hotéis, restaurantes, aparecem na TV. Neste ponto, o Japão está atrás de outros países asiáticos - diz ela.
As declarações de Haruna vêm dando a ela uma aura de militante, e a cantora não tem medo de se expor sob os holofotes para propagar sua mensagem. Só conseguiu vencer o concurso internacional depois de ter feito uma dieta radical que engoliu 15 quilos de seu corpo mignon - uma dura batalha acompanhada pelas câmeras de TV de um programa de variedades, com direito a pegadinhas (a produção jurou que ela não estava sendo filmada e fingiu esquecer em seu quarto um bolo). Ela não se importa. Diz que desde pequena tinha dois sonhos: ser menina e aparecer na televisão.
- Ter conseguido essas duas coisas parece um milagre - afirma, com lágrimas nos olhos, durante entrevista para correspondentes estrangeiros, em Tóquio. - Depois da operação que me transformou em mulher, achei que viveria normalmente, como uma japonesa qualquer. Mas estava errada. Não posso ignorar o sofrido Kenji Onishi que ainda vive dentro de mim. Quero viver de forma verdadeira e gostaria que as pessoas me aceitassem como sou: com uma parte mulher e outra homem - pede Haruna, cuja voz varia bastante de timbre durante a conversa, indo do extremamente feminino ao masculino.
A TV japonesa dá espaço para celebridades assumidamente gays, mas elas, em geral, só fazem comédias e não abordam assuntos sérios. Haruna reconhece que o movimento GLBT (gays, lésbicas, bissexuais e transexuais) não tem poder no Japão e afirma que, se houver espaço, gostaria de se engajar mais na luta contra a discriminação. Ela chora ao lembrar o sofrimento de sua infância e adolescência e as várias vezes em que pensou em se matar, antes de se transformar, oficialmente, numa mulher. A lei permite a mudança de sexo no país mas, mesmo com a carteira de identidade feminina, a transexual teve dificuldades, por exemplo, para alugar um apartamento em Tóquio.
- Fui recusada pelo menos cinco vezes. Sempre ouvia que aqueles eram condomínios familiares e minha presença poderia incomodar - conta.
Mas, como toda a celebridade que faz jus ao nome, Haruna não fala apenas de tristeza. Diante da plateia de jornalistas, troca o discurso pró-tolerância sexual por uma hilária imitação de Matsuura Aya - uma das mais endeusadas cantoras pop do país - e fica bem à vontade, por exemplo, quando perguntada sobre coisas como seus segredos de beleza: bota saquê com sal grosso na banheira para suar (!); usa loção para tirar a oleosidade da pele três vezes ao dia e não come carboidratos à noite. Além disso, faz piada ao mostrar seu lado empresária.
- Mas o que realmente deixa a pessoa esplendorosa é comer okonomiyaki - revela, referindo-se a uma panquequinha tipicamente japonesa, prato principal de uma rede de restaurantes que tem Haruna como sócia.
(O Globo, 24/01/2010)
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